Brincar e Aprender: dois lados da mesma moeda? Quais conteúdos para uma escola de educação infantil de qualidade?

Por Gisela Wajskop ¹

No último dia 15 de setembro, em evento internacional inédito, Instituto Singularidades e Escola da Vila apresentaram -- para um público seleto de coordenadores, professores e especialistas de escolas privadas e públicas de diferentes partes da cidade e do país --, questões que há muito preocupam os educadores da área da educação de crianças pequenas.

Com a presença de duas investigadoras e docentes da Universidade de Buenos Aires, Ana Malajovich e María Emilia Quaranta, fiz a mediação deste que é, há muito, um assunto que me interessa e me instiga tanto na área da pesquisa quanto da formação docente.

Sabemos que o Brasil, por diversas contingências, não possui sistema nacional de ensino e este fato acarreta uma diversidade de concepções e práticas docentes que oscilam desde o menos responsável “laissez-faire” ² quanto a oferta de atividades repetitivas e memorizantes apoiadas em tradição escolar do ensino fundamental. Entre uma e outra, navegam diversas práticas que priorizam ora o mítico lúdico infantil, ora uma rotina rígida e eficaz no treino das crianças para longas esperas e obediência certa.

As duas palestrantes, com visões complementares, expressaram suas ideias a respeito das questões curriculares na educação infantil, apresentando suas concepções sobre as relações entre aprendizagem formal e aprendizagem espontânea e/ou pela utilização do jogo e da brincadeira.

Ana Malajovich mostrou-nos o paradoxo existente na relação entre aprendizagem e brincadeira, trazendo-nos questões em torno de uma concepção de currículo infantil baseado na inserção cultural das crianças. Por meio de propostas sistematizadas e organizadas, em torno de conteúdos e didáticas das áreas do conhecimento, afirmou ser possível tornar acessível às crianças os elementos da cultura, a fim de lhes permitir sua participação na vida social. Seu recorte cultural supõe uma reflexão a respeito desses conteúdos associados a quatro aspectos:

  1. Necessidade de seleção dos conteúdos que possa propiciar um processo de construção da identidade nas crianças, por meio de aprendizagens diversificadas, realizadas em situações de interação, que lhes permita apropriar-se dos conteúdos da cultura.
  2. A renovação nos conteúdos obriga, necessariamente, a uma renovação na forma pela qual se ensina e como se concebe a aprendizagem infantil. Esse processo, que tem como protagonistas as crianças, só é possível quando a instituição e o docente apresentam os conteúdos associados a práticas sociais reais e de forma não simplificada.
  3. O ensino dos conteúdos supõe decisões em relação a “o que ensinar”, a partir do real conhecimento do grupo de crianças.
  4. Os conteúdos constituem um instrumento para a compreensão da realidade e não fim em si mesmo e, para isso, é fundamental que compreendamos que a realidade de que se trata é a ampliação do mundo infantil.

Maria Emilia, com uma apresentação mais objetiva e baseada em exemplos, demonstrou formas de trabalho com contagem numérica que supõem a contextualização do ensino da matemática. Para ela, nesse caso, a aprendizagem se utiliza de práticas de jogos, de maneira a sugerir problemas cognitivos para as crianças. Nessas práticas, salientou que as crianças podem desenvolver a curiosidade, a confiança em si mesmas, o desejo de conhecer, o respeito à diversidade e a autonomia na busca das soluções.

A riqueza das apresentações suscitou diversas perguntas dos participantes, interessados em aprofundar aspectos tanto da organização curricular quanto do uso da brincadeira como estratégia didática.

O debate mais acalorado, porém, esteve focado no papel da brincadeira nas práticas e nos currículos infantis. Da plateia, houve quem defendesse total abandono da sistematização relativa às áreas de conhecimento, sugerindo que o espaço da educação infantil é prioritariamente local de experimentação e desenvolvimento da imaginação das crianças rumo à construção de uma cultura da infância. Ana Malajovich avançou um pouco a reflexão, afirmando ser a brincadeira necessária para que as crianças experimentem os conteúdos, apropriando-se deles por meio de um faz de conta livre da intervenção adulta. Rosa Iavelberg, em contribuição consistente, propôs uma discussão sobre a possível existência de uma área de ensino específica do brincar.

Em minha opinião, ainda há muito a investigar, concordando, porém, que devamos incorporar a brincadeira como conteúdo de ensino, com estratégias e materiais próprios que, a exemplo da dança, da música e do teatro, tem muito a contribuir como linguagem expressiva no universo infantil. Dessa maneira, poderíamos superar a dicotomia entre ciência e arte presente nos currículos para a educação infantil, sugerindo uma didática específica do brincar que inclua a experimentação e a imaginação como uma das expectativas de aprendizagens das crianças brasileiras.

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¹ Diretora-geral Acadêmica do Instituto Superior de Educação de São Paulo - Singularidades. Doutora em Metodologia de Ensino e Educação Comparada pela FEUSP. Foi coordenadora e autora do Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil.

² A expressão em francês que significa “deixar fazer” é comumente associada às práticas espontaneístas advindas de concepções escola-novistas de educação das crianças pequenas, baseada na crença de que as crianças devem desabrochar espontaneamente se deixadas livres no ambiente em interação com seus pares.